POR VIAS SEGURAS - Associação brasileira de prevenção dos acidentes de trânsito.
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Após a tragédia, a vida

A vida depois de um acidente grave muda completamente por causa das sequelas que a vítima carregará. Mas há vida após a tragédia.

 Entrevista da médica fisiatra Leila Menezes de Castro, superintendente médica de reabilitação da ABBR e chefe da unidade de amputados

Marina Lemle

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A Associação Brasileira Beneficiente de Reabilitação (ABBR) ajuda os pacientes e suas famílias a se adaptarem a essa nova vida da melhor forma possível.

A médica fisiatra Leila Menezes de Castro (foto), superintendente médica de reabilitação da ABBR e chefe da unidade de amputados, conversou com Por Vias Seguras sobre as dificuldades e vitórias dos pacientes.

Quais as lesões mais comuns em pessoas que sofreram acidentes de trânsito e suas sequelas?

Pacientes traumáticos se enquadram em três unidades principais: trauma raquimedular, crânio-encefálico e amputados. As lesões têm uma relação direta com as sequelas.

No trauma raquimedular, as lesões principais são a paraplegia ou paraparesia e a tetraplegia ou tetraparesia. Na paraplegia e na tetraplegia, o paciente não tem movimentos, dependendo do nível da lesão na coluna - quanto mais alto, maiores os comprometimentos. A paresia é quando há uma lesão incompleta, e o paciente fica com a força dos movimentos diminuída. Quando a lesão é incompleta, normalmente se opera o paciente para fixar aquela parte da coluna e descomprimir a medula, podendo recuperar bastante os movimentos. Mas não é só a parte motora que fica comprometida nas lesões medulares: há uma série de problemas relacionados, como a parte urinária e fecal.

No trauma craniano, a maior sequela é a hemiplegia, que é paralisação de todo um lado do corpo – se a lesão é do lado esquerdo, a paralisia será do lado direito – e junto com a hemiplegia muitas vezes há distúrbios de memória e de fala.

Na unidade de amputados, a maior frequência é de amputações de membros inferiores. Há um número muito grande de pacientes traumáticos por acidentes de moto, porque o parachoque da moto é a perna da pessoa, levando à amputação. Às vezes o paciente chega amputado e com fraturas do outro lado, então não podemos colocá-lo de pé até consolidar o trabalho da ortopedia na outra perna.

Em quanto tempo os pacientes acidentados chegam à ABBR?

Normalmente de três a quatro meses depois do acidente, mas isso é muito. O ideal seria que viessem logo depois da alta do hospital geral, mas percebemos que a reabilitação ainda está um pouco afastada da emergência. O paciente traumático aguarda um tempo até conseguir se estruturar e ser encaminhado para cá. Há casos de pacientes que chegam já com um ano de amputação.

Por que demora tanto?

Uma série de situações contribui para essa demora, entre elas a própria dinâmica familiar, porque tudo fica mais difícil. Muitas vezes era o paciente que sustentava a casa, e com a tragédia, há muito o que se resolver. Num primeiro momento pode haver uma dificuldade de transporte, já que não internamos o paciente - o tratamento é ambulatorial. E há ainda o problema do encaminhamento. Nem sempre o médico encaminha o paciente para a reabilitação.

Por quê?

A reabilitação ainda não está dentro dos hospitais. São poucos os hospitais que têm uma equipe de reabilitação atuante. Trabalho num hospital geral e, como fisiatra, ainda sou um peixe fora d’água. As pessoas não sabem muito bem o que o fisiatra está fazendo ali. Entendem que a reabilitação é uma questão posterior. Se não fizermos esta interface, pescando o paciente na enfermaria e preparando-o para que continue no pós-alta o trabalho ambulatorial, ele sai sem prescrição de muleta ou de cadeira. Aí vai para casa e descobre que está faltando coisa, então começa a buscar como fará para sair da cama, para se locomover. Daí leva um tempo até ele conseguir chegar ao centro de reabilitação para uma consulta. Quando existe no hospital um fisiatra ou alguém de equipe de reabilitação, seja fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, ele acaba fazendo essa ponte, mas isso ainda não é comum de se encontrar.

Como é o estado de espírito dos pacientes e suas famílias ao chegarem na ABBR?

Na primeira consulta, o médico ouve o paciente, os familiares e olha os exames e laudos, para entender toda a problemática até ali. É um momento muito difícil, em que o médico pergunta como foi o acidente e o paciente tem que descrever tudo que aconteceu. Às vezes isso angustia a família, porque revivem o momento de dor, a história no CTI, na enfermaria... É muito doloroso. O paciente nunca viveu essa situação, é totalmente leigo. A pessoa com deficiência é muito discriminada, o leigo sente pena. Ele próprio discriminava e sentia pena. Aí ele se vê na situação do deficiente. Às vezes ele precisa muito mais de psicologia do que de fisioterapia. Por isso, é avaliado por todos os profissionais: terapeuta ocupacional, psicólogo, fonoaudiólogo...

A expectativa deles condiz com a realidade?

Geralmente eles vem pensando em um milagre – que é voltar à vida de antes – mas o médico tem que mostrar que daqui pra frente é uma nova história. Nem trabalhamos com respostas na primeira consulta, que é demorada, leva pelo menos 45 minutos. Ouvimos e orientamos bastante, mas evitamos traçar prognósticos, porque dizer que o paciente não vai mais andar não é o que ele quer ouvir e muitas vezes nem vai conseguir ouvir. Está aberto a ouvir só o que quer. A cabeça do paciente muda muito quando vê o mundo da reabilitação. Ele chega achando que precisa de uma coisa, e aí vê tudo que pode precisar. É comum ele chegar aqui com uma listinha de perguntas. Ouvimos desde as perguntas mais simples até as que nunca paramos para pensar. Unir a expectativa dos médicos com a expectativa do paciente pode levar um tempo. A equipe tem que conversar não só sobre a parte médica mas também sobre como é a família com o paciente, como é a higiene, o transporte, as expectativas, para dar um norte ao paciente. Temos as consultas, o atendimento, as reuniões de equipe, as palestras, que são o que a equipe precisa para estar antenada com o paciente e com o que ele precisa ouvir. Com o tempo, ele vai mudando o pensamento, porque no dia-a-dia vai enxergando os limites e percebe que as coisas são mais difíceis do que esperava.

Uma pessoa com uma lesão mais grave e pior prognóstico tem maior dificuldade de lidar com a situação do que outra com lesão menos grave?

Acho que sim, porque numa lesão irreversível, com maior comprometimento, a dependência é muito maior. É esse grau de dependência que terá dali para frente o que mais choca as pessoas.

Quanto tempo leva a reabilitação?

É um tratamento que requer longa permanência. O tempo de cada um é uma questão muito individual, mas sempre peço aos pacientes para se programarem para seis meses até a alta. Existe a fase pré-protética e é preciso sempre se trabalhar numa estabilidade clínica. Antes de colocar a prótese o paciente precisa ficar de pé, ter um bom equilíbrio, andar com um andador ou com muletas, para perceber que a perna que tem está fortalecida. Só aí que poderá botar a prótese.

Como é o tratamento?

Não tratamos só o paciente. Geralmente ele vem com uma família e toda uma questão maior a ser resolvida. É preciso dar orientação ao cuidador, ao familiar, fazer um trabalho educativo. Num trauma craniano, por exemplo, o paciente pode ter um distúrbio de alimentação, então é preciso orientar o familiar a alimentar o paciente adequadamente. Muitas vezes há problemas respiratórios, distúrbios de memória, e os pacientes e familiares precisam ser orientados. O amputado, no treinamento protético, necessita de todo um cuidado com o coto, como limpar, como enfaixar. É muito dever de casa.

A reabilitação em si não é só pensar na recuperação total, mas tudo relacionado às sequelas: orientar a pessoa e a família, tornar o ambiente acessível, meios auxiliares de locomoção, alguma órtese, adaptação para higiene e alimentação, tudo isso está dentro do pacote. Tanto casos mais como menos graves precisam da avaliação da equipe de profissionais para ver o que é importante.

Qual o grau de importância da família na reabilitação?

Ter uma família presente e colaborativa ou ter uma família ausente pode resultar em prognósticos totalmente diferentes. A reabilitação é muito a troca, a pessoa ficar do lado fazendo seu papel no dia-a-dia. Muitas vezes chamamos o familiar para conversar separado do paciente. Entramos na vida dele, participamos dos problemas familiares e damos muita orientação o tempo todo.

Como fica a vida afetiva e sexual do paciente?

Essa é uma questão fundamental, principalmente no paciente ativo com trauma medular ou crânio-encefálico, assim como num outro grupo de pacientes que não tem um comprometimento físico, mas tem um comprometimento estético. A questão da imagem corporal é trabalhada em vários setores, pelo fisiatra, o urologista, o psicólogo. A vida afetiva muda completamente. O psicólogo ajuda o paciente a se relacionar com quem já está ou a buscar novos relacionamentos.

Há diferença na reabilitação de pacientes jovens e mais velhos?

O paciente jovem pode ter uma recuperação mais rápida, por causa da boa condição física do organismo. O de mais idade pode trazer uma história de vida com hipertenção, diabetes ou cardiopatias que limitam o programa de reabilitação. Mas depende muito de como a pessoa vê a vida. Não é só pensar na recuperação total, mas de como viverá daí para frente.

Qual a importância da terapia ocupacional para pessoas em reabilitação?

Muita, total. Para o leigo, a terapia ocupacional passa a noção de que são joguinhos ou atividades manuais como tricô, crochê. Mas é tudo que é relativo à função. Hoje, na ABBR, a terapia ocupacional é dividida em seis unidades. O terapeuta avalia as demandas do paciente, prescreve os dispositivos necessários e ensina o paciente a usá-los da melhor forma, desde as atividades domiciliares, como se vestir, fazer a higiene, se alimentar.

O terapeuta ocupacional faz a reabilitação cognitiva a partir do rastreio dos déficits cognitivos relacionados ao trauma que o paciente de fato tem e que às vezes ninguém percebe. Aí ele explica para a família os déficits reais, mostrando que na verdade o paciente não está mais irritado ou mais questionador, mas que existe sim uma sequela cognitiva que pode estar na memória ou na linguagem e que será trabalhada. Se o terapeuta descobre, por exemplo, que o paciente usava o computador para fazer compras, ele lança mão dessa tecnologia para estimular a memória, os cálculos. Às vezes o paciente não evolui não pela questão motora, mas porque não está entendendo o que está sendo pedido, e não cumpre porque não entendeu, mas a família acha que é porque ele não quer fazer. Por isso esse retorno para a família é muito importante para ela entender que tem mesmo que ter mais paciência e repetir. Com isso o paciente volta para a equipe conseguindo ter uma evolução melhor.

Muitas vezes a gente acaba encaminhando o paciente para outros caminhos na vida que ele não imaginaria. Temos um psicólogo na casa que é um ex-paciente nosso. Na oficina ortopédica temos três funcionários que são amputados protetizados e que hoje são protéticos – confeccionam as próteses. Ás vezes a pessoa acaba convivendo tanto naquele meio da reabilitação que se apaixona por alguma profissão na área, e se encontra profissionalmente, o que é muito positivo.

Em termos financeiros, quais as principais dificuldades dos pacientes?

De uma hora para outra, muda completamente a rotina de vida, a vida familiar, profissional, o equilíbrio econômico. Antes a pessoa tem acesso a tudo, faculdade, trabalho... Depois, se trabalhava formalmente, passa a ser licenciado, a renda diminui, a acessibilidade é dificultada, os gastos aumentam muito, porque passam a incluir remédios, dispositivos especiais para facilitar o dia-a-dia, a contratação de um cuidador ou alguém da família tem que parar de trabalhar para cuidar e acompanhar a pessoa durante esses meses. Tudo modifica, e a tendência é ter que gastar mais tendo menos.

O SUS cobre todo o tratamento?

 Boa parte. Mas tratamentos como musicoterapia e hidroterapia são a parte.

E o DPVAT ajuda?

O paciente pode ser reembolsado pelos tratamentos que o SUS não cobre (até o valor limite de R$ 2.700). O DPVAT é uma indenização com um valor X, mas os gastos do paciente são mensais.

Faltas são frequentes?

Sem dúvida nenhuma há questões que acabam afetando a ABBR: muitos pacientes faltam em dias de chuva; outros faltam por causa de intercorrências clínicas, como escaras e infecções. Temos uma preocupação com as faltas. A ABBR tem um transporte que faz roteiros e o serviço social faz um cadastro para facilitar a vida do paciente. Quando há faltas, o setor faz o elo para entender o que está acontecendo e dá os meios: busca o Rio Solidário, a Prefeitura, mostra caminhos para facilitar o dia-a-dia do paciente. A equipe do serviço social conhece os direitos do paciente e o ajuda a acessá-los.

Acontece de os pacientes abandonarem o tratamento?

Raramente. A alta geralmente é institucional, porque o paciente tem muito medo de perder o elo, o direito e o vínculo com a ABBR. O difícil é ele aceitar a alta! Independente de onde o paciente mora, ele tem aqui um acolhimento difícil de encontrar lá fora. É um local totalmente adaptado para ele, com casos muito similares ao dele, com profissionais que trabalham no dia-a-dia com isso, que vão a congressos e vivem para dar o tratamento adequado a esse perfil de paciente. Ele sabe que é daqui que vão sair as novidades. O acolhimento aqui é exatamente o que ele busca: tem passe-livre, psicólogo, assistente social. Ele acaba fazendo um círculo social e começa a refazer a vida aqui. A gente tem muita dificuldade de dar alta.

Quais os critérios para alta?

Há várias formas de alta. A melhor é por objetivos alcançados a partir do prognóstico. Os objetivos dependem do caso. No paciente protetizado, um objetivo seria chegar na marcha, ou na marcha com auxílio de uma bengala. Existe também a alta por não evolução, seja por faltas sucessivas ou por problemas clínicos. E há ainda as altas por óbito ou por abandono, que são raras. São poucos os locais de reabilitação. Mapeamos serviços em outras localidades, mas os pacientes preferem vir aqui.

Como fazem para ajudar o paciente a aceitar a alta?

Trabalhamos com preparo de alta. Não dizemos “a partir de hoje você não vem mais”, dizemos “daqui a 60 dias vamos fechar o seu programa, porque os objetivos estão sendo alcançados...”, depois dizemos “daqui a 30 dias...”

E depois da alta?

Quando acaba o programa, a manutenção é feita em outro lugar. Mas o paciente vem na pós-alta e é orientado a marcar novas consultas para acompanhamento. Se houver necessidade de uma reavaliação para algum procedimento necessário, ela é feita. Então o paciente continua com a gente, não para o programa em si, mas para o controle pós-alta.

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