O ponto focal no aumento das mortes
Se não fosse pelo crescimento dos óbitos de motociclistas, já a principal causa da mortalidade no trânsito, o Brasil teria apresentado queda no número de vítimas entre 1996 e 2010.
Artigo publicado pelo Senado na revista « Em discussão », em número especial, com título « Explosão de motos e mortes » de Novembro 2012 (página 16).
Em quinze anos, foram registradas em torno de meio milhão de mortes nos diversos tipos de acidentes de trânsito. Em 2010, o sistema do Ministério da Saúde para classificar as causas de óbitos no país contabilizou perto de 41 mil mortes no trânsito, com tendência a superar, já em 2015, o grande vilão da violência letal —os homicídios —, hoje na casa de 50 mil vítimas ao ano.
Desde 2009, os acidentes com motocicletas superaram em vítimas fatais os atropelamentos, passando a ser a principal causa das mortes no trânsito. As fatalidades sobre duas rodas aumentaram 846,5% entre 1996 e 2010. Predominantemente homens (89%), as principais vítimas são jovens (40% dos óbitos estão na faixa etária de 20 a 29 anos).
“No país, as motocicletas transformaram-se no ponto focal do crescimento da mortalidade nas vias públicas”, define o cientista Julio Jacobo Waiselfisz, do Instituto Sangari, na apresentação do abrangente Mapa da Violência 2012 — os novos padrões da violência homicida no Brasil, divulgado em abril. O estudo indica que a taxa de mortalidade por acidentes de moto cresceu de 4,8 por 100 mil habitantes para 5,7 por 100 mil habitantes entre 2008 e 2010.
As tendências da última década no trânsito brasileiro indicaram significativas quedas na mortalidade de pedestres, manutenção das taxas entre ocupantes de automóveis, leves incrementos nas mortes de ciclistas e expressíveis aumentos na letalidade entre motociclistas, informa a publicação. A quantidade de motocicletas nas ruas, aliada à falta de preparo dos condutores e ao desrespeito dos motoristas, faz os números de acidentes crescerem significativamente a cada ano.
O médico José Luiz Dantas Mestrinho, diretor de Assuntos Parlamentares da Associação Médica Brasileira (AMB), considera que “o cenário é de guerra, grave”.
“O que nos assusta é que, até hoje, não foi tomada uma decisão para que essa carnificina seja estancada. Temos assistido a coisas brutais. Sou cirurgião. Poderia ter trazido cenas horripilantes de pessoas sem cabeça, pernas amputadas, intestinos expostos, mas acho que não vale a pena nos expormos a tanto.
Um acidente aéreo, quando ocorre, cria uma comoção nacional porque morreram trezentas e tantas pessoas.
Aí, todo mundo começa a tomar providências. O motociclista, coitado, ou um atropelado, por mais triste que seja a situação dele ao ser atropelado ou acidentado, é um. Mas faz parte de uma estatística que só faz crescer. Isso é fundamental para que coloquemos no papel e discutamos com as autoridades projetos de lei para que as coisas tomem um rumo diferente.”
Tanto com motocicletas como em outras formas de acidentes, os óbitos no trânsito do país tiveram um crescimento quase constante a partir do ano 2000, mas apresentaram um detalhe importante: praticamente estagnaram nas capitais na primeira metade da década e desde então vêm caindo, enquanto no interior e nas cidades de médio porte as taxas já superam, em muitos casos, as médias estaduais e nacionais (leia mais a partir da pág. 28). Cidades que ultrapassam os 10 mortos por 100 mil habitantes estão espalhadas por todo o país, porém mais frequentemente nas regiões de menor desenvolvimento.
O senador Cristovam Buarque (PDT-DF) fez, em Plenário, um relato dramático de uma viagem a o interior do Ceará, quando participava da última campanha eleitoral. Ele testemunhou o crescente número de vítimas da violência no trânsito e disse que não podemos deixar que o país tenha uma paisagem de guerra civil “pela incompetência de motoqueiros e dos governantes, pela falta de educação no trânsito de todos nós”.
“Houve um momento em que tive uma espéciede incômodo, dearrepio como se estivesse em uma cidade de Angola que sofreu guerra civil e onde há muitas pessoas paralíticas, de muletas, de cadeira de rodas.
Perguntei: ‘Por que é que tem tanta gente assim?’ E me disseram: ‘Moto’. A motocicleta está fazendo de algumas cidades brasileiras a paisagem que se tem em cidades que saíram de guerra civil, em que a mutilação é por causa de minas, por causa de balas”, contou o senador.
Quem morre e quando morre
São muitos os fatores que podem explicar o rápido crescimento das mortes de motociclistas, mas todos os estudos recentes apontam que as causas principais são procedimentos de risco dos próprios condutores, como andar no chamado corredor das vias (leia mais a partir da pág. 32), e também o consumo de álcool. Se o risco de morrer em uma colisão de automóvel já é significativo, a depender das circunstâncias do acidente, sobre uma motocicleta essas chances são 20 vezes maiores. Esse número sobe para 60 vezes se a pessoa não estiver usando o capacete, item obrigatório pela legislação (veja infográfico na página 20).
“Acho que não existem acidentes de moto, existem acidentes de trânsito em que as motos estão envolvidas. E as motos se envolvem mais porque vemos mais vítimas.
Quando dois carros batem, apenas amassa o para-choque, já na moto o para-choque do motociclista é ele mesmo”, resume Julia Greve, médica fisiatra, professora associada da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Laboratório de Estudos do Movimento, do Hospital das Clínicas.
Cada vez mais, os serviços de resgate nas ruas, os atendimentos de emergência dos hospitais e mesmo as unidades de terapia intensiva vêm sendo dominados pelas vítimas de acidentes de motocicletas. Em 2011, de acordo com dados da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet) e do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), quase 50% das internações de vítimas de acidentes de trânsito foram de vítimas de acidentes de moto. (leia mais a partir da pág. 23).
Maiores vítimas de homicídio, homens jovens, negros e pobres também são os que mais morrem de acidentes de motocicleta, segundo pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes e da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro. Uma explicação é o fato de que 85% dos compradores de motos pertencem às classes C, D e E, que têm menos brancos.
“O recém-habilitado, quando coloca a carteira no bolso, já se acha piloto, que pode fazer o que um profissional da moto faz. Mas ele não consegue; acaba sendo uma vítima do trânsito e, sem querer, acaba sendo um camicase”, acrescenta Valter Ferreira da Silva, presidente do Sindicato dos Motociclistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindimoto-RS).
De fato, quem morre nas noites e madrugadas sobre duas rodas em São Paulo, por exemplo, são frentistas, garçons, manobristas, motoristas, porteiros, seguranças e vigilantes, ajudantes gerais, mecânicos, eletricistas e pedreiros, diz o estudo Mortos e Feridos sobre Duas Rodas: estudo sobre a acidentalidade e o motociclista em São Paulo, de Heloísa Martins e Eduardo Biavati. “Em 2008, mais da metade das mortes a partir de 21h até 6h59 são de motociclistas dos grupos de trabalhadores dos serviços, vendedores do comércio em lojas e mercados e trabalhadores da produção de bens, manutenção e reparação —quase todos (80%) os garçons mortos em 2008 enquanto pilotavam suas motocicletas morreram nesse intervalo de horário, retornando para casa após o trabalho”, relata a publicação.
Ao contrário do que se imagina, as categorias que usam a moto como fonte de renda (motofretistas, motoboys e mototaxistas) não estão entre as principais vítimas. Na capital paulista, as estatísticas divulgadas pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) da prefeitura revelaram que apenas 8% dos 512 mortos eram profissionais.
É preciso reagir
Médicos, especialistas, senadores, profissionais motociclistas e representantes da indústria foram unânimes em defender um esforço para dar fim ou pelo menos reduzir consideravelmente a espiral de óbitos sobre duas rodas.
“Nosso cenário é de estarrecedor caos, dor e prejuízo para toda a sociedade. E de quem é a responsabilidade?
Dos motoboys? Das empresas? Dos fabricantes? Do município? Do estado? Do governo federal? No cenário desordenado, jovens de 18 a 26 anos morrem ou se aposentam por invalidez, enquanto contribuintes pagam as contas das altas taxas de hospitalização e da Previdência Social”, lamenta Luiz Carlos Mello, presidente do Sindicato das Empresas de Telesserviços e Entregas Rápidas do Rio Grande do Sul.
“Ao mesmo tempo em que as pessoas têm a possibilidade de ter algum equipamento e ascensão social, estamos caminhando para ser recordistas de números trágicos. O número de vítimas do trânsito segue para superar os homicídios”, adverte o senador Jorge Viana (PT-AC), que é médico.
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