Fugir do ônibus e dos engarrafamentos
Motos escapam entre carros e ônibus parados no congestimento: 40% dos compradores adotam o veículo para cumprir o trajeto casa-trabalho
Artigo publicado pelo Senado na revista « Em discussão », em número especial, com título « Explosão de motos e mortes » de Novembro 2012 (página 39).
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Dois fatores intrinsecamente ligados contribuíram para o impressionante crescimento da presença das motocicletas no Brasil: a péssima qualidade do transporte coletivo, que é a regra geral, e o conturbado trânsito nas grandes cidades. Versátil, a motocicleta ainda desempenha com facilidade uma série de tarefas que são complicadas para outros veículos, em especial na área de prestação de serviços públicos. Hoje, é impensável se imaginar um sistema de socorro, um policiamento ostensivo ou o trabalho do Corpo de Bombeiros sem as motocicletas.
“A grande maioria dos compradores opta por esse transporte como substituição ao transporte público, cada vez mais precário, caro e sem cumprir horários. Está difícil circular nas grandes metrópoles por causa do caos urbano e da falta de estrutura adequada. Então, essa é a alternativa que resta, especialmente para aqueles que fazem da motocicleta o seu veículo de trabalho”, avaliza a senadora Ana Amélia (PP-RS).
Segundo trabalho apresentado pela chefe da Assessoria da Superintendência de Segurança de Trânsito da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) de São Paulo, Heloísa Martins, no Congresso Internacional de Trânsito de 2012, em Porto Alegre, a motocicleta é encarada hoje como uma solução de mobilidade, por fatores como baixo valor de compra, facilidade de pagamento, baixo custo de manutenção, agilidade no trânsito (para superar os congestionamentos e a falta de espaços para estacionar, problemas que atormentam os donos de automóveis), independência e possibilidade de ser usada como instrumento de trabalho (veja quadro mais adiante, com título "Razões que levam o brasileiro a ter uma motocicleta").
“Por que aumenta a adesão à motocicleta? Em primeiro lugar, porque as pessoas estão insatisfeitas com o transporte público. 40% dizem que estão trocando o transporte público pela motocicleta. 19% das pessoas dizem que a utilizam para lazer. 16% a utilizam como instrumento de trabalho, onde se encaixam os motofretistas. 10% utilizam a motocicleta em substituição ao automóvel, pela dificuldade de circulação no espaço urbano”, detalhe o diretor-executivo da Abraciclo, José Eduardo Gonçalves, citando dados de levantamento realizado pela entidade no final do ano passado.
Classes C, D e E
E quem está procurando a moto como solução para esses problemas é justamente a população que mais depende dos metrôs, ônibus e trens. Tanto que, conforme as estatísticas da Abraciclo, 85% das vendas são de veículos mais baratos, de até 125 cilindradas, cujo preço parte de R$ 4 mil. Advogado especialista em trânsito, Felipe Carmona afirmou que não são só profissionais que compram motos, mas também pessoas que as utilizam para se locomover para o trabalho e até altos executivos, para fugir do trânsito.
No estudo Mortos e Feridos sobre Duas Rodas, Heloísa Martins e Eduardo Biavati lembram ainda que a motocicleta pode ter sido fator determinante na empregabilidade de muitos jovens das classes C, D e E, na medida em que proporcionou mobilidade para essas pessoas, “especialmente quando a ocupação está ligada à prestação de serviços noturnos ou às escalas horárias móveis dos serviços 24h – isto é, quando a disponibilidade de transporte público (ônibus, metrô ou trem) é muito reduzida ou inexistente”.
Historiadora formada pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Administração Pública e Planejamento Urbano pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Heloísa diz que uma evidência clara de que, para essas pessoas, as motos são muito mais que um mero meio de transporte é o fato de a presença das motos não se limitar aos horários tradicionais de pico, na ida e volta do trabalho.
“O que se verifica, no entanto, é um volume maciço de motocicletas a partir de 7 da manhã que só começa a ceder por volta de 22 horas, correspondendo à circulação constante de trabalhadores em busca do trabalho, por vezes mais de um, em um ou mais locais, e em turnos horários flexíveis. É o caso de muitas ocupações típicas da construção civil (pintor, marceneiro, eletricista, pedreiro, serralheiro e seus auxiliares e ajudantes), do comércio (vendedores, promotores, representantes), além de diversos prestadores de serviços (chaveiro, encanador, montadores e instaladores dos mais diversos bens, manobristas, seguranças particulares, frentistas de postos de combustível, porteiros e operadores de telemarketing)”, escreveu Heloísa, que há 30 anos se dedica ao planejamento urbano e de trânsito.
Status e liberdade
Porém, segundo o sociólogo Eduardo Biavati, a explicação da troca do transporte público pelo individual não é suficiente. Ele cita a pesquisa sobre origem-destino entre os usuários do Metrô de São Paulo que aponta que o crescimento das viagens sobre duas rodas entre 1997 e 2007 não se fez às custas da redução das viagens de ônibus, metrô ou trem na cidade.
“A população trocou o ônibus pela moto? Em Ji-Paraná (RO), qual sistema de transporte público havia antes da opção da motocicleta? E em Assis, no Oeste Paulista? E em Mossoró (RN)?”, questiona Biavati.
Ele não discorda que a motocicleta também se traduz em status social e em conquista de autonomia de mobilidade, que pode ser interpretada como a libertação das condições desconfortáveis e insuficientes dos transportes públicos. Esses fatores, avalia Biavati, são bem explorados pelo marketing da indústria de duas rodas.
Porém, o pesquisador lembra que pesquisa realizada pelo Ibope em 2006 apontou que, para 38,5% dos motofretistas, a aquisição da motocicleta coincide com a primeira habilitação, o que permite supor que o comprador passou de passageiro do transporte coletivo para a de condutor autônomo. No entanto, a maioria dos motociclistas (75,1%) e dos motofretistas (61,5%) já possuía experiência de direção de automóveis antes de pilotar a motocicleta.
“É possível que muitos tenham trocado o carro pela moto, pois foram justamente as viagens de automóvel, seja como motorista ou passageiro, que diminuíram cerca de 12,5% na década analisada pela pesquisa do Metrô”, afirma Biavati. O número é parecido com os que revelaram aos filiados da Abraciclo que compraram a moto em substituição ao carro.
Por conta desses dados, o senador Paulo Davim (PV-RN) acredita que a solução para o problema das mortes no trânsito passa pela melhoria do transporte público no Brasil.
Já a senadora Ana Amélia critica o preço das passagens de ônibus, que serviria como incentivo à troca pelo transporte individual: “um litro de gasolina (cerca de R$ 2,85) pode fazer 30 km com uma moto. Esse preço é inferior ao preço de uma passagem de ônibus de uma cidade satélite até Brasília, em um transporte ruim e caro”.
Fator socio-econômico
Segundo Sérgio Luiz Perotto, consultor da Confederação Nacional de Municípios (CNM), essa visão de que são as classes C, D e E que mais compram motos, deve ser observada para que o problema seja atacado pelo ângulo correto.
“As pessoas dizem que, quando houver transporte adequado, bom, eficiente e barato, deixarão o automóvel em casa. Mas tem gente que quer garçom servindo água mineral gelada e lanche no ônibus. Esqueceram-se de dizer que o transporte melhorou muito ao longo dos anos. Deixar o carro em casa significa mudar de comportamento. Hoje carro é status, tem conotação social.”
A psicóloga Sandra Crescente, coordenadora Nacional da Psicologia para o Trânsito, da Federação Nacional de Psicólogos da Argentina, participou dos debates do Senado pela internet e argumentou que é preciso se levar em conta o perfil socioeconômico do comprador de motocicletas antes de fixar novas regras para o seu uso.
“Se é a classe baixa que compra as motos por não ter poder aquisitivo para comprar um automóvel, que é bem mais caro, como o senhor pensa que esse motociclista poderá custear um curso de capacitação e toda a roupa, o uniforme e também a revisão mecânica da moto, entre outras sugestões na questão da segurança? Seria com recurso do Estado ou do próprio motociclista? Quer dizer, o sistema, para a compra de moto, é fácil; o problema é atender a essas exigências”, explica.
José Eduardo Gonçalves, da Abraciclo, admite que o consumidor das classes mais pobres tem dificuldades não só para comprar da moto, mas também para pagar o licenciamento, o seguro obrigatório e outras despesas. Esse aperto financeiro justificaria, como alega Gonçalves, o fato de que muitos motociclistas não têm treinamento adequado, já que fazer o curso e tirar a carteira custa caro (leia mais sobre o tema a partir da pág.74).
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