Opinião sobre a Conferência OMS em Brasília, Novembro 2015
Abruptas, mas evitáveis, tragédias no trânsito são endêmicas no Brasil
Realizada em Brasília em novembro 2015, a Conferência Global de Alto Nível sobre Segurança no Trânsito passou despercebida em meio à atualidade brasileira
Marina Lemle
Novembro começou sob trevas. Desastre ambiental, atentados, escândalos de corrupção, crise política e econômica. O cenário sombrio tirou o foco de outra tragédia, diária e endêmica no Brasil: a violência no trânsito, que mata um avião de gente por dia. Sem a repercussão que demandava, aconteceu em Brasília a II Conferência Global de Alto Nível sobre Segurança no Trânsito, promovida pela Organização Mundial de Saúde e o Ministério da Saúde.
A primeira Conferência Global, realizada em Moscou em 2009 com o lema “Tempo de agir”, foi a semente da Década Mundial de Ações para a Segurança do Trânsito 2011/2020, instituída pela ONU. A Carta de Moscou marcou um compromisso global para a redução pela metade do número de mortos e feridos no trânsito no mundo até 2020. Cinco pilares de ação foram definidos para os países desenvolverem: gestão da segurança do trânsito, infraestrutura mais segura e mobilidade, veículos mais seguros, usuários mais seguros e atendimento às vítimas.
Meia década mais tarde, a Conferência de Brasília veio com o lema “Tempo de resultados”. Seria a hora e a vez de cada país signatário da Carta de Moscou mostrar os avanços realizados nestes cinco primeiros anos no seu território. Aos presentes não era novidade, entretanto, que não havia o que se comemorar. Pior, projeções sugerem um crescimento de 30% dos acidentes fatais até 2030. Problemas que já despontavam no fim da década passada se agravaram, como os acidentes envolvendo motociclistas. A vulnerabilidade do pedestre e do ciclista também estão na pauta do dia, em meio ao caos insustentável da mobilidade urbana. E, por trás de tudo que não andou, o pilar número um, do qual dependem todos os outros: gestão.
Não à toa, a Carta de Brasília, lançada no evento, tem como primeira recomendação “encorajar os Estados que ainda não o tenham feito a designar e/ou fortalecer agências coordenadoras e mecanismos de coordenação, com financiamento próprio, em nível nacional ou subnacional, assim como fortalecer a colaboração nessa área entre governos, incluindo entre parlamentos, sociedade civil, instituições acadêmicas, setor privado e fundações filantrópicas”.
A gestão, onde tudo começa, é o principal entrave para os países de baixa e média renda, que concentram cerca de 90% das mortes e lesões no trânsito no mundo, apesar de terem apenas 54% da frota de veículos.
Como verificado no último relatório global da OMS, o desnível entre os países participantes da Conferência ficou evidente, assim como a percepção de que para se atingir a meta global é necessária cooperação internacional. Enquanto representantes da Europa e Austrália apresentavam casos de sucesso e assumiam suas falhas já apontando para soluções, representantes de países africanos destacavam-se pela nobreza com que reconheciam precisar de ajuda, tanto prática como teórica. O anfitrião Brasil acomodou-se na sua posição de renda média e resultados neutros.
Na abertura da Conferência, ao lado de autoridades como a diretora geral da OMS, Margaret Chan, a presidente Dilma Roussef informou uma redução de 6% do número de mortos no Brasil entre 2012 e 2013, de 44.812 para 42.266, que atribuiu à Lei Seca. Não mencionou, entretanto, que em 2009 foram registrados 37.594 mortos, portanto houve um aumento de 19% nos três anos anteriores. Cabe lembrar ainda que os números do Datasus destoam dos da Seguradora Líder/DPVAT, que paga de 50 a 60 mil indenizações por óbitos resultantes da violência no trânsito por ano.
No campo da legislação, no qual o Brasil tem um bom conceito internacional, apesar das controvérsias sobre os limites de velocidade, Dilma destacou as leis da cadeirinha, do cinto de segurança, do airbag e do freio ABS. No seu discurso, mencionou a criação da Política Nacional da Mobilidade Urbana e da Política Nacional de Trânsito, mas não explicou o que deverá ser feito e quando. A presidente citou o programa Parada - Pacto Nacional pela Redução de Acidentes -, do Ministério das Cidades, como meio promotor de uma nova cultura de trânsito. Na prática, no entanto, o que o Parada faz são ações pontuais de propaganda. Por fim, Dilma destacou o papel do Samu nas emergências pós-acidente.
Sem Vida no Trânsito
Representantes da sociedade civil estranharam o fato de Dilma não ter feito menção ao projeto Vida no Trânsito, coordenado pelo Ministério da Saúde com suporte da Organização Pan-americana de Saúde (OPAS/OMS). O projeto é o braço brasileiro do Road Safety in Ten Countries (RS-10), com coordenação global da OMS. Considerado moderno e bem estruturado, o Vida no Trânsito prevê a articulação de parcerias locais entre órgãos públicos de diferentes áreas e esferas, a sociedade e o setor privado para a implantação de ações integradas de prevenção, desenvolvidas a partir do estudo das estatísticas e das causas das ocorrências.
Mais de cem vidas foram salvas de 2012 a 2013 com a implantação, em cinco capitais, do Vida no Trânsito junto com ações da Lei Seca. Porém, o projeto parece estar perdendo fôlego, o que se confirma pela falta de menção a ele no discurso presidencial. Ampliado às demais capitais brasileiras e outras quatro cidades grandes, não teve a adesão de duas capitais do Sudeste – Rio de Janeiro e São Paulo. No caso do Rio, falta a publicação da formalização do Comitê Intersetorial e da Comissão de Dados para acompanhamento e execução do projeto.
Na véspera da Conferência, o Vida no Trânsito foi tema de um evento paralelo promovido pelo Ministério da Saúde que encheu o auditório do Centro Internacional de Convenções.
Na conta da Saúde
No evento do Vida no Trânsito, Marta Silva, coordenadora geral de Vigilância de Agravos e Doenças não Transmissíveis do Ministério da Saúde, salientou que o trânsito é a primeira causa de mortes de crianças entre 10 a 14 anos no Brasil e a segunda de jovens entre 15 e 39 anos.
Marta chamou atenção para os custos destas tragédias evitáveis: só nas rodovias federais, 170 mil acidentes custaram ao país cerca de R$ 12,3 bilhões em 2013, sendo 64% gastos em cuidados de saúde e perda de produção devido às lesões e 34,7% em prejuízos associados a perdas de cargas e danos aos veículos. Se forem levadas em conta todas as rodovias (federais, estaduais e municipais), o custo chega a R$ 40 bilhões, segundo estimativa do Ipea.Com o aumento brutal dos acidentes envolvendo motociclistas, os gastos hospitalares dobraram de 2008 a 2013, quando 157 mil internações custaram R$ 229,5 milhões à Saúde.
Marta enfatizou que não adianta só fazer campanhas. “É preciso ser contundente, promover a educação de crianças, implantar ações de redução de velocidade e de segurança, como uso de cinto, capacete e cadeirinha, e fazer fiscalização”, frisou. Ela também ressaltou a importância da qualificação dos dados, cruzando informações de diferentes órgãos, da constituição de comitês intersetoriais para planejar ações integradas e da municipalização do trânsito.
O Secretário de Vigilância em Saúde Antonio Nardi disse que o Brasil se compromete a fazer balanços, assumindo e reconhecendo deficiências. “O dever é nosso de fazer e fazer bem feito. Já crescemos em legislação. Precisamos melhorar a infraestrutura, a fiscalização e a educação”, admitiu.
Aliança de ONGs pede ação
Presente ao encerramento do workshop do Vida no Trânsito, Diza Gonzaga, presidente da Fundação Thiago de Moraes Gonzaga – Vida Urgente e mãe do jovem Thiago, morto em 1995, em Porto Alegre, ressaltou que o trânsito é uma questão de saúde pública. “A Saúde vê o trânsito com o viés da vida, e não da máquina. A vacina está na mudança de comportamento”, disse. Ela ressaltou a importância da participação da sociedade nas ações de prevenção e acrescentou que as ONGs têm sido mais chamadas para participar de eventos na área de saúde do que na de transportes.
Diza apresentou a Aliança Brasileira de Organizações da Sociedade Civil pela Vida no Trânsito (Abrot) e colocou as ONGs que a compõem à disposição para parcerias com órgãos de estados e municípios para ajudar a cumprir a meta da Década.
Ricardo Borges, da Associação Piauiense de Educação no Trânsito (Apetrans), explicou que os municípios podem se beneficiar do trabalho das ONGs, já que elas têm acesso direto à comunidade, enquanto os órgãos públicos às vezes têm problema de recepção. “As ações feitas coletivamente, com a participação de ONGs, ficam mais eficientes”, afirmou. Para ele, é preciso cobrar o lugar da sociedade civil nos órgãos e gestões, conforme previsto em lei.
No dia seguinte, integrando a mesa de abertura do evento, Diza Gonzaga representava as vítimas e a sociedade civil, assim como Zoleka Mandela, embaixadora do Programa de Estradas Seguras da ONU e mãe da adolescente Zenani, que morreu em 2010, em Soweto, África do Sul, na volta da festa de abertura da Copa do Mundo. Em seu discurso, a neta de Mandela enfatizou que não pode haver desculpa para a falta de ação dos governantes e gestores.
A cobrança por ação foi a tônica da participação da Abrot na Conferência Global. A aliança de ONGs divulgou uma Carta na qual manifesta preocupação quanto aos resultados brasileiros nesta primeira metade da Década de Ação pela Segurança no Trânsito. Na contramão da meta global, o país permanece entre os cinco mais violentos do mundo no trânsito.
A Carta foi lida por Fernando Diniz, presidente da ONG Trânsito Amigo, do Rio de Janeiro, e pai de Fabrício, morto em 2003, durante outro evento paralelo à Conferência, o Fórum de Debates “O papel da sociedade civil na busca da segurança no trânsito”, promovido pelo Observatório Nacional de Segurança Viária e a Frente Parlamentar em Defesa pelo Trânsito Seguro. A Abrot critica a falta de uma gestão nacional coordenada, com capacidade profissional e vontade política, questiona por que o Plano Nacional de Redução de Acidentes, de 2011, não foi posto em vigor, e por que os recursos destinados por lei a ações de prevenção e educação não são aplicados, enquanto valores muito maiores acabam gastos na atenção a centenas de milhares de vítimas. A Carta cobra ações efetivas das autoridades e pede engajamento à sociedade.
Nilton Gurman, um dos idealizadores da ONG Não Foi Acidente e tio de Vítor, morto em São Paulo em 2011, destacou a união das ONGs em prol da causa. “Vamos cobrar das autoridades a redução desses números absurdos e juntos mudar esse país”, disse. Ele ressaltou que a necessidade de se reforçar a fiscalização e a condenação dos culpados. “Crime tem que ter justiça e punição”, afirmou.
Diza Gonzaga frisou a diferença entre campanha e educação. “Entendemos educação como um processo permanente, e não uma questão pontual em véspera de feriados. Educação é a arma mais poderosa para mudar esse país”, afirmou.
Ricardo Borges frisou que a fiscalização traz resultados imediatos, enquanto a educação forma a pessoa e precisa ser promovida desde a infância nas escolas e nas famílias.
Angela Souza, do Instituto Paz no Trânsito (IPTran), do Paraná, enfatizou que a velocidade é o maior fator de acidentes. “Velocidade mata, e evitar isso é questão de educação”, disse. Ela contou que o IPtran trabalha com reeducação do infrator, dando a ele a oportunidade de entrar em contato com as famílias e vivenciar o drama das vítimas, trabalhando, por exemplo, como maqueiro num hospital.
Participantes criticam organização da Conferência
A falta de empenho do governo brasileiro também foi criticada no que diz respeito à própria organização do evento.
Contundente, Fernando Diniz acha que “faltou um pouco de tudo” em relação à Conferência de Moscou, à qual esteve presente. “O discurso da Presidência da República na abertura foi desastroso, sem compromisso, sem coragem de dizer a verdade. Mentiram quanto ao número de mortos, mas infelizmente já morreram. E quanto aos nossos feridos e sequelados, como estão sendo tratados? Taparam o sol com a peneira, mas a sujeira passou. Não pensem que os delegados estrangeiros não perceberam nossas fragilidades. Faltou humildade e transparência para assumir aquilo que deveria ter sido feito e não foi sequer tentado. E ainda ousam sediar uma Conferência dessa magnitude. Até isso conseguiram subestimar”, critica.
Para Diniz, a falta de participação brasileira em debates sobre temas cruciais, como álcool e drogas nas estradas, foi proposital. “O tráfego pesado representa 5% da frota brasileira, mas está envolvido em 30% dos acidentes e é responsável por 41% dos acidentes com vítimas fatais. Por que o Ministério da Saúde não criou um painel exclusivo para este tema, podendo ouvir a experiência de países do primeiro mundo? Onde estavam nossos debatedores, os defensores das diversas tecnologias, para que o público tomasse conhecimento do que se aplica pelo mundo mas não aqui?”, questiona.
Diniz defende que experiências que deram resultados sejam copiadas, caras ou não. “Estamos falando de vidas e estas não têm preço. Portanto, invista-se o quanto for necessário, porque não é custo, é investimento. Conta muito maior pagamos nós, vítimas da violência no trânsito”, conclui. Ele sugere que se realize uma conferência intermediária para favorecer os países menos cumpridores de metas, como os africanos e o Brasil.
Vera Santos, presidente da Associação Paraense de Motociclistas (Aspamoto), ficou decepcionada com o descaso do governo em relação aos motociclistas. “Nada de planos, nada de resultados e totalmente despreparado pela situação que se encontra”, qualificou. Ela esperava que o Ministro da Justiça se manifestasse em relação aos crimes de trânsito e falasse sobre punição. Por outro lado, Vera acha que o encontro foi positivo porque a Abrot se fortaleceu com o apoio dos deputados federais Christiane Yared, do Paraná, fundadora do IPtran e mãe de Gilmar, morto em 2009, e o deputado Hugo Leal, do Rio de Janeiro, autor da Lei Seca, que receberam a Carta da Aliança num evento organizado na Câmara dos Deputados pela Frente Parlamentar em Defesa de um Trânsito Seguro.
Para Fernando Pedrosa, membro da Trânsito Amigo e secretário parlamentar que assessora a Frente, é importante entender que a Conferência Global não era um seminário para debater temas pontuais e locais, mas sim uma prestação de contas por parte de cada um dos mais de 100 países signatários da Carta de Moscou. Ele lamenta pelo que chamou de “resultado maquiado” desse encontro global. “A impressão que as autoridades brasileiras passaram para os estrangeiros é que, por aqui, está tudo certo. Que estamos fazendo o dever de casa e não precisamos de ajuda. Um delegado estrangeiro mencionou a criação de um fundo para apoiar os países em desenvolvimento nas ações para a redução da violência no trânsito. Como não precisamos de ajuda, nossos irmãos africanos, presentes maciçamente na Conferência, são fortes candidatos a levarem o ‘bolão’”, conta.
Ricardo Borges observou que muitos países disseram ter reduzido o número de mortes, mas em apenas três minutos os representantes não tiveram como detalhar suas ações nem comprovar estatisticamente seus dados. Por outro lado, ele achou muito relevante saber de diferentes experiências feitas em parceria com organizações sociais que resultaram em redução de mortes.
Diza Gonzaga concorda que houve falhas, mas pondera que a Conferência não era apenas ou para as organizações brasileiras, mas, como a de Moscou, da qual também participou, voltada para os países signatários, representados por ministros, chefes de estado e organizações da sociedade civil. “A nossa participação na abertura teve um significado importante, pois a Fundação Thiago Gonzaga representou as organizações brasileiras, assim como a Zoleka representou as organizações do mundo. Acho que isso foi sim uma deferência”, observa.
Ela também destaca como ponto positivo o evento paralelo realizado pela Aliança Global de ONGs, que teve sua participação como representante da Federación Ibero Americana, a voz da Abrot no painel do Vida no Trânsito e a participação ativa de ONGs de outros países e da Criança Segura nas atividades. “Não podemos confundir a Conferência com a nossa frustração pela pouca ou quase inexistente ação de nosso governo para atingir os objetivos da Década”, afirma.