Vidas paralisadas
Mesmo quando um acidente de trânsito não é letal, frequentemente acarreta sequelas graves que podem mudar completamente os rumos da vida de uma pessoa e sua família.
Entrevista de Marcelo Ares, médico fisiatra da Clínica de Lesão Medular da AACD.
Marina Lemle
Em 2010, os acidentes de transporte terrestre (ATT), principalmente com motos e carros, foram a principal causa dos atendimentos por lesões por trauma na Clínica de Lesão Medular da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), na sede do Ibirapuera, em São Paulo.
A clínica é referência em reabilitação de lesões medulares no estado. Um estudo realizado no período entre 12 de janeiro e 23 de novembro de 2010 abrangeu 161 pacientes atendidos - 117 homens (72,7%) e 44 mulheres (27,3%). Do total, 114 pacientes chegaram paraplégicos (70,8%) e 47 tetraplégicos (29,2%). A causa da lesão foi traumática na maioria dos casos - 110 pacientes, ou 68,3%.
Destes 110 pacientes com lesões traumáticas, 47 (42,7%) foram vítimas de acidentes de trânsito. Em seguida estão os feridos por projétil de arma de fogo, com 29 casos (26,2%), e as quedas, com 24 casos (21,8%).
De acordo com o médico fisiatra Marcelo Ares, gerente de reabilitação da AACD, as estatísticas da Clínica de Lesão Medular coincidem com as do Ministério da Saúde: entre 1995 e o início dos anos 2000, a principal causa dos atendimentos era ferimento por arma de fogo. Em 2005, os acidentes de trânsito começaram a figurar na frente, como acontece no Brasil e no mundo. E, de 2009 em diante, houve um aumento específico dos acidentes com motos.
Uma pesquisa de 2009 da Clínica de Lesão Medular confirma este crescimento: as lesões por acidente de moto aumentaram de 43% para 61%, sendo a principal causa de atendimento na clínica hoje. O estudo de 2010 mostrou que das 47 vítimas de ATTs atendidas com lesão medular traumática, a maioria – 22 (46,8%) - estava de moto. Outros 18 feridos (38,3%) estavam de carro. Também foram atendidos três pedestres atropelados, duas vítimas de acidente com bicicleta e duas de acidente com caminhão.
Segundo o médico, em acidentes de moto, bicicleta e atropelamentos, mais áreas costumam ser lesadas, como coluna, membros e crânio, porque a pessoa está mais vulnerável. Também podem ocorrer lesões de plexo braquial nervosas e periférias, amputações e fraturas diversas.
(Nota: o plexo braquial é um conjunto de nervos ligando a médula espinhal aos membros superiores.)
“Os acidentes de trânsito causam vários tipos de lesões, geralmente resultantes de alta velocidade e imprudência. A gravidade depende da velocidade do impacto e da área afetada. Os pacientes que chegam a nós são sempre graves: sofreram traumas de crânio com sequelas, amputação e outras lesões”, conta.
Fonte: Clínica de Lesão Medular/AACD, 2010.
Ares acrescenta que as vítimas sofrem diversas consequências físicas, emocionais e de reinserção social, que se refletem na sua família e acompanhantes. Por isso, o tratamento engloba médicos da área física e psicológica.
“Há uma perda da independência de adultos jovens, que são a maioria nestes acidentes. O custo das consequências é muito alto, tanto na reabilitação quanto na retomada da vida profissional, os equipamentos necessários e o que o paciente deixa de produzir”, lamenta. A maioria dos acidentados têm entre 20 e 39 anos.
A maioria dos pacientes do estudo tem nível de escolaridade baixo ou médio – cerca de um terço – 53 – têm o ensino fundamental incompleto e 40 o médio completo. Quase todos - 149 (92,5%) – são do próprio estado de São Paulo.
Fonte: Clínica de Lesão Medular/AACD, 2010.
Do acidente à reabilitação
Ares explica que, quando ocorre um acidente de trânsito com vítimas, a equipe de socorro avalia o estado do paciente e verifica que partes foram lesionadas. Em casos de politrauma, é prestada a assistência imediata e geralmente o paciente é levado a um hospital de referência da região para receber os primeiros socorros.
O tempo de internação no hospital, segundo o fisiatra, varia de acordo com o que ocorreu no acidente - que partes foram lesadas, com qual gravidade e se houve complicações. A alta dependerá da estabilidade clínica do paciente e das possibilidades do hospital. De acordo com a pesquisa da Clínica de Lesão Medular, os primeiros socorros prestados pelos hospitais foram considerados "adequados" em 67 casos (60,9%) e "inadequados" em 35 (31,8%).
Após o protocolo de salvamento e as cirurgias necessárias, a vítima precisa de tratamento de reabilitação clínica e atenção especializada, de acordo com a sequela. Na Clínica de Lesão Medular, uma triagem verifica se o paciente tem condições de receber o tratamento de reabilitação, que inclui reeducação do esvaziamento da bexiga, restabelecimento do hábito intestinal, prevenção de lesões na pele e o estímulo à independência, na medida do possível, para a realização de atividades cotidianas e o retorno ao convívio social. A equipe multidisciplinar é composta por médico fisiatra, urologista, enfermeiro, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, psicólogo, assistente social e técnico em órteses.
Um precioso tempo perdido
Um problema sério, segundo Ares, é a demora entre a fase aguda e a triagem para reabilitação. Metade dos pacientes só começa o tratamento mais de 18 meses após a lesão. Em 2010, apenas 16% dos pacientes chegaram à clínica entre um e seis meses após o acidente. “O ideal seria que o paciente tivesse a liberação clínica e começasse a reabilitação logo em seguida”, diz.
Entre os fatores que levam ao início tardio da reabilitação estão complicações clínicas importantes, desinformação, fila de espera, encaminhamento equivocado ou o paciente começou a ser tratado em outro lugar. Na triagem, alguns são dispensados porque já foram reabilitados, fazem reabilitação em outros lugares ou moram longe e não conseguem vir para as sessões de atendimento, entre outros motivos. Mais de 90% dos pacientes são “enquadrados”, isto é, são considerados aptos a receberem o tratamento.
Fonte: Clínica de Lesão Medular/AACD, 2010.
Se a vítima tem plano de saúde, pode ir para um hospital do seu convênio, desde que esteja capacitado para o tratamento da lesão sofrida. Na AACD, o atendimento é pago pelo seguro-saúde quando a pessoa o tem. Mas se não o tem, também é recebida. A AACD mantem um convênio com o SUS e recebe o ônus de doações.
“O atendimento ou é gratuito ou tem custo acessível. Os atendimentos são para todos da mesma forma. Os critérios são de acordo com a gravidade e tempo de chegada”, garante Ares.
AACD é referência
A AACD é uma entidade privada, sem fins lucrativos, com mais de 60 anos de atividades, que tem como principal missão promover a prevenção, habilitação e reabilitação de pessoas portadoras de deficiência física, especialmente crianças, adolescentes e jovens, favorecendo a integração social. Atualmente, a instituição também atende adultos e idosos.
Em 2010, a AACD realizou 1.348.799 atendimentos entre cirurgias, consultas, aulas e terapias. Foram mais de 5.800 atendimentos diários, 6.457 cirurgias e 60.655 aparelhos ortopédicos fabricados e comercializados – uma das fontes de renda da instituição.
No início de 2011, foram registrados mais de 8 mil pacientes em terapia. Atualmente, há mais de 32 mil pessoas na fila de espera para terapias nesta instituição.
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