Extratos da pesquisa IPEA 2015, parte 2: Políticas públicas, debates e reflexões
Conforme visto, a perda da sociedade com os acidentes de trânsito nas rodovias é bastante significativa. Torna-se fundamental a intensificação das políticas públicas voltadas para a redução dos acidentes de trânsito e também da severidade desses acidentes.
Os acidentes nas rodovias apresentam alta severidade por envolverem maior dispersão de energia, em função das elevadas velocidades de circulação. Tudo isso em um contexto de crescimento forte da frota de veículos automotores que provoca o aumento do tráfego em geral e também dos conflitos de trânsito.
O primeiro grupo de políticas públicas que merece destaque é o referente às ações perenes de educação no trânsito. Isso inclui desde campanhas educativas que estimulem o uso de equipamentos de segurança – como capacetes e cinto de segurança, o alerta de perigo de uso de álcool associado à direção, entre outras campanhas – até a estruturação pedagógica de conteúdo a ser ministrado nos ensinos fundamental e médio. As crianças e os jovens de hoje serão os motoristas de amanhã. Esse último item precisa avançar no país, já que a maioria das escolas não aborda a questão nem mesmo de forma transversal ao conteúdo tradicional pedagógico. O governo federal poderia criar condições para isso, produzindo conteúdo pedagógico e programas de capacitação de professores e multiplicadores, para que as escolas comecem a ministrar conteúdo sobre educação no trânsito para seus alunos.
As principais causas dos acidentes com morte nas rodovias federais, de acordo com os dados da pesquisa, podem ser combatidas pela realização maciça de campanhas educativas. Essas campanhas devem chamar a atenção dos condutores para os principais motivos associados aos acidentes, como: a desatenção no trânsito (o uso de celular na direção se encaixa nesse grupo), o uso de álcool e o desrespeito às normas elementares de trânsito, como a ultrapassagem em locais proibidos e o excesso de velocidade, por exemplo. As campanhas não podem ser esporádicas, elas devem ser perenes e focar diretamente o público-alvo traçado no projeto de comunicação. A tendência, nos últimos anos, é a realização de campanhas com imagens chocantes para que os motoristas despertem para a seriedade do problema.
Outro grupo importante de medidas refere-se às questões regulatórias e estruturas de gestão e fiscalização de trânsito. Em termos de legislação de trânsito, pode-se considerar que o Brasil apresenta uma boa situação em relação aos demais países. Desde a aprovação do novo código de trânsito brasileiro, em 1997, e da criação de leis federais posteriores mais rígidas em relação às infrações de trânsito, como a Lei Seca, por exemplo, o país se coloca em uma situação privilegiada, em termos de arcabouço legal, para reprimir os desvios e os abusos dos motoristas. Por outro lado, há ainda no país uma sensação de impunidade com relação à penalização de motoristas que provocam acidentes graves em função de negligência, ingestão de álcool ou comportamento perigoso no trânsito, como grande excesso de velocidade, por exemplo. A justiça brasileira tende a aplicar penas pouco proporcionais aos danos causados às vítimas, mesmo que esses indivíduos tenham assumido o risco de produzir acidentes graves.
Outro problema grave reside nas estruturas de gestão e fiscalização de trânsito para que de fato as leis sejam respeitadas pela população. Neste aspecto, um ponto importante a se ressaltar é que o órgão gestor tenha uma estrutura adequada de coleta e tratamento das informações sobre os acidentes ocorridos na sua área de jurisdição, inclusive com o mapeamento georreferenciado da ocorrência de cada um. A maior parte dos estados que são responsáveis pela gestão das rodovias de âmbito estadual não apresentam sistemas de informações mínimos sobre acidentes, o que reflete a estrutura precária de gestão e controle do tráfego nessas rodovias. Geralmente as estruturas estão mais voltadas para o registro e o controle das frotas, já que há processos de arrecadação de impostos, principalmente o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), associados a eles, ficando a estrutura de registros de acidentes em um nível de prioridade inferior.
A PRF apresenta um sistema de informação modelo em termos de registro de acidentes em rodovias. E os registros são utilizados por todos os gestores para identificar trechos críticos e planejar ações com o objetivo de reduzir a quantidade de acidentes graves nas rodovias federais.
A estrutura de fiscalização e a presença de policiais nas rodovias são fundamentais para inibir as infrações e também para dar mais segurança para todos os usuários. A atuação da PRF em todos os estados de maneira capilarizada permite reconhecer as peculiaridades, a sazonalidade e a cultura de cada região do país. Hoje a Polícia Rodoviária Federal possui 401 postos de fiscalização distribuídos em 147 delegacias, 21 superintendências regionais e cinco distritos regionais. Nos últimos dez anos, a PRF apresentou uma expansão de 32% no seu quadro de policiais, com um total de 10.175 policiais em dezembro de 2014.
Para auxiliar os policiais na tarefa de planejamento operacional utilizando estatísticas, foi iniciado em 2011 o Projeto Controle Estatístico (PCE). O projeto se baseia na análise estatística de acidentes e infrações para identificar as ações que podem ser implementadas para reduzir o número de acidentes graves. Na análise de acidentes, busca-se identificar os pontos críticos e a melhor forma de atuar sobre eles, seja com fiscalização, sinalização, infraestrutura, seja com educação. Na análise de infrações, procura-se identificar o perfil do policial, seus principais locais e horários de fiscalização e os tipos de autuações extraídas. O resultado é a redução de 5% na quantidade de mortos e 9,7% na quantidade de feridos graves entre 2011 e 2014, apesar do aumento de 23% da frota nacional de veículos no mesmo período.
Especificamente sobre os acidentes que envolvem motociclistas, observou-se que é o grupo que vem mais crescendo em termos de óbitos e feridos graves nos últimos dez anos. Com o forte aumento da frota de motocicletas e consequentemente dos acidentes, o governo federal deve iniciar um debate mais aprofundado sobre essa modalidade de transporte. Primeiro discutindo valores realistas para o seguro obrigatório e a carga tributária das motocicletas, em função das grandes externalidades negativas produzidas por esses veículos. Deve-se discutir também sobre as condições de habilitação dos condutores, principalmente os condutores profissionais, assim como questões regulatórias dos serviços de transporte que utilizam esse tipo de veículo (estabelecimento de regras e exigências mínimas). Campanhas educativas têm que ser perenes, principalmente nas regiões mais pobres, onde há um crescimento maior da frota de motocicletas e menor ocorrência de habilitação por parte dos condutores, assim como menor uso de equipamentos de segurança, como o capacete. Quanto à legislação, deve-se reiniciar o debate sobre o veto presidencial ao artigo do Código de Trânsito Brasileiro que proíbia tráfego de motos entre as faixas de rolamento (1997), chamado popularmente de “corredor”, principalmente nos cruzamentos semaforizados com tráfego parado. Há quem defenda situação intermediária, em que as motos pudessem trafegar nos cruzamentos semaforizados em baixíssima velocidade, com os pés do condutor apoiados no chão e o pisca-alerta ligado para minimizar o risco de atropelamento.
Um fator importante para reduzir o volume de acidentes de trânsito nas rodovias refere-se às boas condições de circulação dos veículos automotores. Para isso é necessário que os estados implantem os programas de inspeção veicular periódicos preconizados no Artigo 104 do Código de Trânsito Brasileiro. Até hoje isso não foi posto em prática em função da ausência de um marco regulatório adequado no país, que regule inclusive a participação da iniciativa privada na atividade. Um fator também que influencia na redução dos acidentes e da gravidade deles é o avanço tecnológico dos veículos em relação aos equipamentos de segurança. Neste ponto é importante a estrutura de regulação do governo federal, exigindo que a indústria adote padrões de segurança veicular semelhantes aos dos países desenvolvidos, como a exigência, desde 2014, de freios ABS e air bag nos veículos nacionais.
O desafio do governo federal também é criar condições para que os estados brasileiros, principalmente os mais pobres, tenham condições de manter uma estrutura adequada de gestão e fiscalização de trânsito nas suas estradas, criando políticas de qualificação contínua do pessoal envolvido e de investimentos perenes na aquisição e modernização dos equipamentos de operação das polícias. Além disso, é importante que a União fomente a integração das informações de acidentes de trânsito e crie um sistema de informações de âmbito nacional que congregue estados e municípios. Os estados apresentam o forte desafio de estruturar a gestão e a operação do tráfego nas suas rodovias, principalmente por responderem pela maior parte dos acidentes com mortes. Os recursos arrecadados na aplicação das multas de trânsito podem ajudar bastante nessa estruturação e também no financiamento das campanhas educativas. Segundo os dados do portal da transparência do Denatran, o fundo arrecadado pela União correspondente a 5% do valor das multas de trânsito (Fundo Nacional de Segurança e Educação de Trânsito – Funset) em 2014 correspondeu a cerca de R$ 340 milhões, o que significa que estados e municípios arrecadaram mais de R$ 6 bilhões em multas naquele ano (Denatran, 2015). Cabe aos órgãos competentes verificar se esse dinheiro está sendo aplicado, atendendo a sua destinação legal.
Por fim, vale destacar as políticas de melhoria da infraestrutura viária, englobando as condições de circulação e sinalização para condutores de veículos e pedestres. A identificação de trechos críticos que podem ser melhorados através de intervenções de engenharia é fundamental. Foi visto que a colisão frontal é o principal tipo de acidente que produz óbitos. A duplicação da via nesses trechos de maior incidência de acidentes desse tipo é um exemplo de intervenção com alta eficácia, assim como trechos com sinalização inadequada. Um caso especial de melhoria da infraestrutura é quanto aos investimentos em equipamentos de segurança aos pedestres e ciclistas. Geralmente rodovias em áreas urbanas concentram a maior parte desses acidentes, que podem ser evitados com bons projetos, visando ao aumento de segurança dessas pessoas, com destaque para equipamentos de travessia de pedestres (passarelas) e também melhoria da iluminação pública nos trechos de maior fluxo de pessoas, já que no período noturno há maior ocorrência de atropelamento.
Vale destacar as novas tecnologias de informação que podem ajudar bastante na tarefa de informar aos usuários das rodovias dos perigos à frente e permitir maior coordenação e eficácia das operações de fiscalização e de controle de tráfego. Neste grupo de tecnologia destacam-se também os novos equipamentos de monitoração da velocidade dos veículos. O controle da velocidade é um elemento fundamental para reduzir não só a quantidade, mas também a gravidade dos acidentes de trânsito, principalmente os acidentes envolvendo atropelamentos. Recentemente há diversos casos de rodovias que reduziram bastante a quantidade de mortes com a introdução de equipamentos de monitoração da velocidade dos veículos.
À União, além da responsabilidade de melhorar as condições de operação da PRF, cabe o papel de fomentar essas políticas que objetivam a redução dos acidentes em todas as rodovias brasileiras, com programas de financiamento e estruturação da gestão pública, além da capacitação dos agentes envolvidos.